Até 1990, a cidade de São Paulo chegou a ter poucas e boas livrarias mais ou menos dedicadas aos estudos tradicionais. De início, algumas palavras sobre a então centenária Casa Fretin, especializada em artigos relacionados à medicina em geral (Fretin, em francês, significa "peixe miúdo, refugo, bagatela" ou, mais precisamente, no caso, "pechincha"; adiante se verificará a justeza desta observação) . Sua sede, em prédio muito antigo no centro velho da cidade, manteve inalterado o decór 1900 até seu lamentável fechamento, há aproximadamente dez anos. Um pequeno e balouçante elevador pantográfico nos levava à sobreloja, onde percorríamos estantes com livros, não raro, à espera de leitor por trinta ou mesmo quarenta anos. Localizamos, para espanto de nossos correspondentes na Europa, verdadeiras raridades, esgotadas há várias décadas em todo mundo. Ainda mais incrível foi a descoberta de um pequeno depósito onde eram estocados livros "fora de moda" ou "ruins de venda" em meio aos mais heteróclitos objetos, como minúsculas balanças de precisão para dosagem de remédios, instrumentos cirúrgicos e de cutelaria, estranhos vidros e recipientes para laboratórios, armações de óculos, etc. Chegamos a passar, mais de uma vez, horas seguidas neste "quarto de despejo", fazendo minuciosa verificação, livro por livro, para afinal termos em mãos alguns exemplares admiráveis, considerados "refugo" e a mim vendidos a preço irrisório com um sorriso de satisfação do gerente que, traduzido em francês popular seria : "bon débarras!" ("finalmente, consegui me desfazer disto!")
A Livraria Francesa, fundada em 1947 e até hoje situada à Rua Barão de Itapetininga, manteve um interessante estoque de livros dedicados à tradição, especialmente entre 1965 e 1995. Encontrávamos ali, entre outros, importantes livros sobre taoísmo, budismo, islamismo e hinduísmo, inclusive a coleção completa (dezenas de libretos) das traduções para o francês dos Upanishad, com os originais em sânscrito ao final de cada volume (editor: Adrien-Maisonneuve, Librarie d'Amerique et d'Orient). Certa ocasião, a exemplo da Fretin, fomos convidados pela proprietária a conhecer os estoques mantidos no amplo sub-solo, onde encontramos algumas raridades.
Além da Casa Fretin e da Livraria Francesa, podemos citar duas outras que se tornaram bem conhecidas nas décadas de oitenta e noventa por terem se especializado em livros esotéricos e de auto-ajuda: a Livraria Horus e a Livraria Zipak, que encerraram atividades já há alguns anos. A Horus ocupava metade do 11º andar de um edifício situado à Rua Bela Cintra e, sem sombra de dúvida, podia ser considerada uma das melhores livrarias do Ocidente dentre as que se dedicam a assuntos tradicionais. A variedade e a qualidade de seu estoque eram incomparáveis e seria muito difícil apontar outra que exibisse tal conjunto de obras tradicionais, seja pela autoridade e importância de seus autores, seja pela raridade dos títulos.
Para desespero da proprietária, chegamos a ler, confortavelmente instalados em poltronas de couro, da primeira à ultima página, vários livros, cujos preços eram proibitivos. Entre outras preciosidades, havia uma obra de Ananda Coomaraswamy em grande formato (algo perto de 40 X 80 cm.) com reprodução de vários desenhos do autor (folios) sobre arquitetura tradicional e artesanato da India e do Sri Lanka. Onde mais encontraríamos La Guirlande des Lettres , de Charles Vachot ou Le Hong-Fan, de Pierre Grison? La Guirlande é a transcrição de uma palestra proferida pelo autor no antológico Musée Guimet, em Lyon, França, em 1958, publicada em 1959 pela editora Lyon, de Paul Derain. Pequeno formato (12,5 X 16,5 cm.) e apenas 40 páginas: no entanto, um verdadeiro tesouro, cuja tradução pode ser lida neste site.
Le Hong-Fan, do pouco conhecido e extraordinário taoísta Pierre Grison é um raro libreto, com apenas 24 páginas e sem capa dura (13,5 X 22,2 cm); trata-se da tradução anotada e comentada deste importante tratado chinês. Grison é autor do Le Traité de la Fleur d'Or du Suprême Un (Editions Traditionnelles, 1982, Paris) e da obra- prima Angkor au Centre du Monde (Dervy-Livres, Paris, 1980), um tratado sobre o famoso templo Khmer no Cambodja, cuja leitura nos arrebata à alturas dificilmente alcançadas por qualquer outro autor; recomendamos entusiasticamente a tradução e publicação deste livro incomparável.
A Livraria Zipak chegou a posssuir um bom catálogo de títulos tradicionais mas seu ponto forte eram os livros de arte. Das quatro livrarias que comentamos, apenas uma, a Francesa, sobrevive, pois seu extenso catálogo (livros acadêmicos, romances, livros de arte, revistas, etc) abrange várias áreas do cohecimento; o setor de livros tradicionais está reduzido e, infelizmente, os bons estoques disponíveis de há vinte anos já não existem. Há poucas horas, enquanto redigíamos estas linhas, fomos informados do falecimento de sua proprietária, Sra. Claudie Monteil e esperemos que os sucessores preservem do melhor modo esta importante casa de cultura.