Não são poucos os poetas e escritores modernos que têm sido atormentados, mais ou menos, pelo problema da origem da linguagem. De Hugo a Milosz, de Balzac a Ramuz, para ficarmos apenas no domínio francês, muitos se perguntaram longamente sobre a natureza e a estrutura profundas do instrumento que usavam, que lhes queimava os dedos, no qual suspeitavam potências infinitamente superiores às que eles libertavam mais ou menos lucidamente, que eles dominavam até um certo ponto, e cujos mistérios já lhes pareciam bastante vertiginosos. Pois eles viviam em intimidade bem mais estreita, em luta bem mais cerrada com as palavras, para ver nelas somente esses signos convencionais, ruídos contingentes e desenvolvimentos de gritos animais, aos quais buscou reduzi-las o cientificismo contemporâneo. Ou então, em quais filosofias poderiam encontrar resposta às suas interrogações, ou ao menos encorajamento às suas intuições ? Com Fabre d’Olivet? Este se mantém há muito tempo obscuro e dificilmente acessível. - Junto aos escolásticos? A exploração de seus escritos exigiria uma longa e difícil paciência. - No Crátilo de Platão? Mas nesse diálogo uma tradição agonizante se misturou, entre preciosos clarões, a muita cinza. De fato, desde há muito tempo no Ocidente, nessa questão como em muitas outras, reina uma confusão crescente; nós vimos um recente e ilustre exemplo no surrealismo, que se aproximou obstinadamente, ingenuamente, ao pior. As doutrinas orientais, conservadas fielmente até nossos dias, têm muito a nos dizer sobre esse assunto. Eu lhes proponho confrontar seus ensinamentos com as questões, as intuições, as recordações de nossos poetas ou de nossos filósofos: sobre problemas universais, talvez obtenhamos luzes universalmente válidas.
Tudo se resume nos versos famosos de Hugo:
Pois a palavra é o Verbo, e o Verbo é Deus (1) .
Nenhum espírito sério veria hoje, numa tal gradação, vãos malabarismos ou arriscada retórica. É o testemunho deslumbrante de um mestre do verbo humano, plenamente consciente do poder que lhe foi confiado. Procuramos confirmação na doutrina hindu, particularmente explícita e completa.
Lemos no Veda:
No começo era Brahman; com ele estava Vâk, a Palavra; e a Palavra é Brahman.
É, quase palavra por palavra, o início do Evangelho segundo São João:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Mas a tradição hindu vai nos descrever com uma extrema precisão o descenso do Verbo, ou melhor da Palavra, pois ela representa a Potência criadora como feminina, como a Grande Deusa, a Grande Mãe que põe tudo no mundo, no mundo que Ela mesma formou. Porque o Tantrismo, adorador da Deusa, aprofundou especialmente e desenvolveu a teoria da linguagem, esta lhe trazendo, sob a forma do Mantra, um de seus meios espirituais mais potentes. Teoria de uma extraordinária complexidade, que eu tentarei reduzir, sem traí-la, ao mais estrito essencial.
No começo é o Parabrahman, o Brahman supremo, o Princípio do qual não falam os teólogos, porque não se pode dizer nada na verdade: a Índia não o define, se podemos nos exprimir assim, senão por negações, e a China taoísta o simboliza, o que dá no mesmo, pela perfeição do Vazio. O esoterismo cristão naturalmente não o ignora: Preciso ir, escreveu Angelus Silesius, mais alto ainda que Deus, em um deserto (2) . Deserto, de fato, de absoluto silêncio. Mas porque o infinito contém necessariamente a possibilidade do finito, e supõe sua existência ao menos ilusória e provisória, no Absoluto nasce um desejo de criação, e na Paz imutável o Amor, a necessidade de uma troca de amor entre a Unidade e uma multiplicidade saída dela por uma espécie de divino sacrifício, ao qual responderá o sacrifício da multiplicidade com o retorno à Unidade original. Então, o Princípio tendo revestido o aspecto de Brahmâ, o Deus criador, o Deus pessoal das religiões, surge Vâk, a Palavra, que não é outra senão Shakti, a Potência, filha de Kâma, quer dizer do Amor, ou do Desejo criador. Nâda é a relação entre o Todo-Poderoso e sua Potência, a união de Brahmâ e de Shakti, união de onde vai nascer Bindu, o Ponto inicial que produzirá toda a geometria do mundo, o Germe primeiro de onde sairão todos os elementos constitutivos do universo, de um lado, e de outro lado do microcosmo humano: essas duas criações sendo paralelas, fontes de um jogo constante de reflexos, de correspondências e de reações recíprocas.
Tudo é obra da Palavra, que é Potência; tudo em verdade é Palavra. A representação do universo como Som constitui, da realidade, uma das imagens menos infiéis das que o espírito humano é capaz. Do momento em que se produziu no Parabrahaman (de nosso ponto de vista ao menos), uma modificação, tudo, do mais alto princípio criador à manifestação mais grosseira, pode ser entendido e figurado como som, e a linguagem humana lhe apresentar um espelho mais ou menos nítido. Nâda, nome da causa primeira do mundo, não significa outra coisa que Som. E os nomes que nós damos às coisas são a reverberação, certamente bem enfraquecida, bem deformada, do Nome Natural que Deus pronuncia para chamá-las à existência; a vibração particular que nós imprimimos ao ar para dizê-las é a correspondência longínqua, no nosso plano material, da vibração causal que cria os objetos que nós nomeamos. Deus só emite, seu ouvido só ouve o Nome Natural, que portanto se repercute em nossas pobres sílabas humanas. Aos Nomes Naturais, se aplica este verso de Milosz:
Pois os nomes não são nem os irmãos, nem os filhos, mas os pais dos objetos sensíveis (3).
As palavras que nossos lábios formam são as irmãs dos objetos sensíveis, a vibração original tendo criado de um golpe, como gêmeos, a palavra e o objeto (Shabda e Artha), o Nome e a Forma (Nâma e Rûpa), que constituem o duplo aspecto de toda manifestação.
Mas existe uma hierarquia das línguas, e das palavras no interior de uma mesma língua, segundo seu maior ou menor afastamento do Nome Natural, do som Verdadeiro. A aproximação menos imperfeita do Nome Natural é a sílaba, o nome ou a fórmula sagrada, da qual a Índia nos dá o exemplo mais claro e mais lúcido com o Mantra, que pode ser considerado, no plano da linguagem humana, como o Nome Verdadeiro. De onde o homem tira então esses Nomes Verdadeiros, e a garantia de sua verdade? O Yogî, alcançando um certo nível de consciência, ouve o som causal, não por certo tão distintamente, tão plenamente quanto o ouvido divino; mas ele ouve, como antes dele ouviram os primeiros sábios, os Rishis, que o transmitiram, traduzido em nossa linguagem com toda a força e toda a exatidão que era possível. Assim foram revelados os Mantras, assim eles não cessaram de ser verificados diretamente, de milênio em milênio, pelos sábios.
A sílaba sagrada Om, ou Aum, é a mais perfeita transposição, em linguagem humana, da vibração primordial, do som que fez o primeiro movimento rompendo (em aparência) a Paz divina e anunciando a obra da criação. É o eco do imenso, do terrível trovão de Nâda ressoando em sua plenitude no ouvido divino, e perceptível, se bem que atenuado, no ouvido do Yogî. Este percebe, para dizer a verdade, apenas numa etapa muito avançada da via espiritual. O Kundalinî Yoga remonta, um por um, os graus do descenso criador do Verbo, representados no microcosmo do corpo humano pelos centros sutis que são os Chakras, o Yogî, à medida que sua consciência se eleva de Chakra em Chakra, percebe sucessivamente a vibração causal de cada elemento, do mais grosseiro ao mais sutil. No centro o mais baixo, o Mûlâdhâra, que corresponde no plano orgânico à base da coluna vertebral, sua consciência já desperta ouvindo o som causal da Terra, som que ele traduz, para nosso ouvido, pela sílaba Lam, um dos Bîja Mantra ou Mantra-germes. No centro imediatamente superior, o Svâdhishthâna, ele ouve o Mantra da Água, Vam; no Manipûra, no nível do umbigo, o Mantra do fogo, Ram; no Anâhata, no nível do coração, o Mantra do Ar, Yam; no Visshuddha, no nível da garganta, o Mantra do Éter, Ham. É somente depois de ter conduzido e fixado sua consciência para o Chakra mais elevado, o Ajnâ, que a correspondência fisiológica se situa entre as sobrancelhas, que ele percebe o grande Mantra Om.
Os Mantras são pois, no plano humano, para o ouvido grosseiro, o mais próximo e mais fiel eco da vibração criadora emitida e ouvida por Deus, e numa medida menor pelo mortal que começa a ultrapassar o estado humano ordinário. Os outros Mantras são combinações dos Nomes Verdadeiros, ordenados seja em uma palavra, seja em uma fórmula que, pelas sílabas que lhes constituem, são a exata descrição, ou o ser mesmo, de uma divindade, de um princípio ou de uma realidade cósmica. Pois, os sons proferidos por nossas bocas representam o último estado, no plano material, das vibrações criadoras repercutidas de grau em grau, do espiritual ao sutil, do sutil o físico, é evidente que, de nossas sílabas a estas vibrações primeiras, passando por todos os graus intermediários, as correspondências não são somente simbólicas, mas representam parentescos diretos e, nós veremos, possibilidades de ação efetiva.
Pode-se supor uma língua original completamente composta, não certamente de Mantras (ela seria então liturgia), mas de combinações e de derivados desses Mantras, dito de outro modo, de sílabas verdadeiras, filhas semelhantes e, se posso falar, legítimas, do Verbo divino; composta também dessa variedade diferente, secundária, de nomes naturais que sugerem, imitam, como as onomatopéias: não ecos vivos de vibrações criadoras, mas reflexos evocadores das coisas criadas. Se, à voz de Deus chamando à existência, o Mantra responde pelo eco Vam, a linguagem ordinária responderá, mais geralmente, às criaturas por ecos tais como os nomes do trovão, do zéfiro ou do cuco. Esse nomes naturais são inferiores aos primeiros, quase na medida de uma arte que se satisfaz em reproduzir a natureza criada, e inferior à grande arte que, seguindo a expressão de Santo Tomas de Aquino, imita a natureza em seu modo de operação. Uma língua assim formada de ecos divinos ou terrestres, seria a fiel tradução do Verbo e de sua obra. Notemos a este respeito que ela não poderia ser simples, exprimindo toda a diversidade indefinidamente nuançada da criação. Os modernos filólogos, que consideram a linguagem como um instrumento puramente prático, um repertório inteiramente convencional, podem ver um progresso nessa simplificação, no seu empobrecimento no curso das idades; mas se a linguagem é em verdade a flor humana do Verbo criador, a gradual extinção de seus múltiplos reflexos, intelectuais ou sonoros, tais como por exemplo se pode observar na evolução do alemão, e a predizer na do chinês, não é seguramente senão o murchar anunciador do inverno.
Bem depois do que a tradição bíblica chama a confusão das línguas, várias delas, para dizer a verdade, pretenderam ter conservado uma semelhança e uma fidelidade suficientes: é o caso das línguas sagradas, como o sânscrito, o hebreu ou o árabe.
As cinqüenta letras do alfabeto sânscrito, a tradição e a iconografia as dispõem em guirlanda em torno de Brahmâ, o Deus criador, porque elas representam a última floração de sua Palavra. Na hora do fim de um mundo, é ainda o colar composto dessas cinqüenta letras que traz como um troféu a Potência, a Shakti, de criação tornada destrutiva, tendo trocado seu nome de Vâk para o nome terrível de Kâlî.
Quanto às letras hebraicas, a Tradição, a Cabala, lhes atribui um outro conteúdo, uma outra significação, que apenas seu valor alfabético ou fonético. Filhas mais velhas da sabedoria divina, e cantando a louvação do Criador, elas correspondem a essas modalidades, potências ou virtudes divinas que são as Sefiroth, às realidades cósmicas governadas pelas Sefiroth, e aos nomes. Assim, podem, como as sílabas sânscritas, compor Nomes Verdadeiros, ecos de nomes proferidos por Deus. Em tal língua, os textos vulgares não chamarão, como na nossa, outra leitura que fonética, e perderão assim todo seu sentido. Um texto mágico, ao contrário, poderá empregar apenas os valores secretos, as correspondências eficazes ocultadas pelas letras, sem que sua leitura fonética apresente nenhuma significação. Em um nível intermediário, os textos religiosos serão suscetíveis de uma dupla interpretação: dando um sentido claro à simples leitura fonética, mas solicitando do iniciado uma interpretação esotérica, para o desenvolvimento dos valores ocultos, dos sentidos múltiplos de suas letras. E é um fato que Fabre d’Olivet, restituindo à letras hebraicas seu sentido pleno, pode dar dos dez primeiros capítulos da Gênese, que ele chama “a Cosmogonia de Moisés”, uma interpretação cuja coerência é indiscutível, e cujo esplendor metafísico ilumina, transfigura esta sombra de verdade que nos traziam, acreditando nelas, as traduções vulgares. Os hieróglifos egípcios, que foram talvez os modelos das letras hebraicas primitivas, eram certamente suscetíveis de um tal emprego esotérico, exprimindo e velando a um tempo as verdades secretas, e merecendo, então, o nome de “palavras divinas”; desde as origens da egiptologia, Champollion o havia decifrado e afirmado.
As letras árabes, também, entram num jogo de correspondências indefinidas com as realidades aritméticas, cósmicas e divinas, a corrente não tendo jamais sido rompida, mas ao contrário fortalecida, reforjada pela Revelação de Muhammad, entre elas e seu arquétipo celeste. É assim que cada uma de suas vinte e oito letras corresponde, segundo a astrologia árabe, a uma das vinte e oito mansões da lua; e um dos mais ilustres metafísicos do sufismo, Moyiddîn ibn Arabî, escreveu:
Não são, como se pensa, as mansões da lua que representam os modelos das letras: são os vinte e oito sons que determinam as mansões lunares(4) .
Nós vamos seguir, sobretudo, a doutrina hindu, porque ela é particularmente explícita; mas, nós o vemos, a tradição é uma, e unanimemente confirma esta intuição de nosso Mallarmé:
Com seus vinte e quatro signos esta Literatura exatamente denominada das Letras... sistema administrado como um espiritual Zodíaco, implica sua doutrina própria, abstrata, esotérica como qualquer teologia (5) .
Tais sendo a natureza e origem da linguagem, nós entrevemos as potências que ela deve encerrar. E, primeiramente, remontando a partir da linguagem, do interior mesmo da linguagem, o caminho traçado pelo Verbo em seu descenso criador, não seguiria uma via espiritual segura, com etapas precisas e previstas? Todo Yoga, sejam quais forem os métodos e as técnicas, sendo retorno à fonte original, não pode existir um Yoga do Verbo? É assim que a Índia tradicional considera, de fato, o estudo da linguagem. A gramática é para ela outra coisa que para os Ocidentais; seus grandes gramáticos, Patanjali, Bhartrihari, foram Yogis verdadeiros, que se propuseram por alvo último a clara visão de Brahmâ no centro da Guirlanda das Letras. A busca da correção da linguagem constitui já um exercício espiritual; em termos cristãos, uma “imitação” do Verbo. A conservação ou a restauração, nas nossas línguas decaídas, de uma parte da ordem primitiva, é obra meritória pois ela serve o Dharma. Mas o aprofundamento do estudo da linguagem pode constituir uma Sâchâna, uma via espiritual autêntica e completa, permitindo refazer integralmente, em sentido inverso, o caminho da criação: trata-se de remontar de Dhvani, a palavra grosseira, a Sphota, a idéia criadora; o repassar, mas subindo, pelos quatro graus da Palavra: Vaikari, a palavra grosseira, articulada, audível; Madhyamâ, a palavra intermediária, vibração sutil, ainda que unida à vibração sonora; Pashyanti, a palavra “visível”, quer dizer distinta, mas não expressa; enfim Parâ Vâk, simples tendência à idéia, cuja substância não é outra que o Princípio do Verbo; Parâ Vak, a Palavra suprema, aquela que poderia dizer pela voz de Hugo:
Eu existia antes da alma. Adão não é meu pai (6).
Esta fonte interna da linguagem é una com a fonte do Verbo criador. Todo Yoga é realização da identidade do si e do Brahman: é o Brahman sob a sua forma de Shabdabrahman, o Brahman como Som, que reencontra o Yoga do Verbo. Parâ Vâk é Parabrahman. E é esta Palavra suprema que buscou Bhartrihari, gramático, poeta e místico, que sete vezes entrou no monastério e sete vezes saiu, sabendo que encontraria na meditação da linguagem sua via, sua ascese e sua iluminação. Também poderia dizer:
A gramática é verdadeiramente a porta que dá acesso à beatitude suprema (7).
Para o Yogî que não é essencialmente um Shabdikâ, adorador de Vâk, buscador do Brahman concebido como Som, a Palavra fornecerá entretanto, sob a forma do Mantra, poderosas chaves espirituais. Escolhido pelo Mestre, o Guru, em pleno conhecimento da natureza individual do discípulo, e transmitido a este último com toda sua carga espiritual, o Mantra pouco a pouco transformará esta natureza. Ele será freqüentemente uma fórmula contendo a sílaba Om e o nome de uma Devatâ, quer dizer de um aspecto, de uma função, de uma qualidade divina; repetido sem repouso, mentalmente ou vocalmente, durante dias e anos, este nome verdadeiro, encarnação verbal da energia divina, e esta energia mesma, desenvolverá nele todas essas potências, até se tornar seu próprio si. Deus e Seu Nome são idênticos, dizia Râmakrishna; Deus mesmo realizou pela potência de Seu santo Nome (8) . Também o Japa, repetição do nome divino, pode conduzir, por ele somente, às mais altas realizações espirituais: um de nossos contemporâneos, Swâmi Râmdâs, tornou-se um grande sábio pela única e infatigável repetição do nome de Râm. Não se trata aqui do Mantra do Fogo, mas de Râma, o avatar de Vishnu. Em nossa Idade Sombria sobretudo, no Kali Yuga em que a meditação é difícil, e a Via entulhada de obstáculos sempre acumulados, a misericórdia divina fez do Japa um meio de salvação, um substituto dos impossíveis méritos, que não seria suficiente em tempos menos lamentáveis de nossa humanidade. Está escrito: Na idade de Kali, a repetição do Nome de Hari (outro modo de dizer Vishnu) é suficiente para destruir todos os erros (9). E ainda: A repetição de Seu Nome... é para as faltas igual ao fogo para os metais (10). Os budistas esperam, do nome de seu Mestre, os mesmos efeitos: Pronunciar Seu Nome, lembra um sábio chinês (11), nos purifica de todas as transgressões cometidas em todas as vidas durante oitenta milhões de Kalpas.( Precisamos que a duração de um Kalpa, período compreendido entre duas criações, atinge, segundo certos cálculos, quatro mil trezentos e vinte milhões de anos.) A tradição cristã também não ignora os poderes do nome divino, e da sua perseverante repetição. Foi proibido, aos Hebreus, pronunciar e revelar o verdadeiro nome do Eterno, porque sua presença era real; em razão desta mesma presença, para os ortodoxos e especialmente para os Hesicastas, herdeiros diretos dos Padres do Deserto e dos apóstolos, santificante e deificante é por si mesma a invocação do nome de Jesus: nome do homem que Deus se tornou, e do Deus que o homem deve se tornar, ele constitui, mais ainda que um chamado, um alimento celeste, um licor da imortalidade. Os textos hindus não contêm nada de mais explícito que isto, de São João Crisóstomo:
Persevera sem parar no Nome de Nosso Senhor Jesus, a fim de que todo o coração beba o Senhor e que o Senhor beba teu coração, e que assim os dois se tornem Um (12)!
A quem permanece no mundo, e no plano ordinário do mundo, a linguagem oferece possibilidades de conhecimento e de ação que foram descobertas por alguns Ocidentais modernos. Conhecimento e ação, Ramuz por exemplo os pressentiu, e pode escrever em seu Journal:
Apertarei a língua e, aterrador, a farei expelir até seus últimos segredos , e suas riquezas profundas, a fim de que ela me exponha seu interior e que ela me obedeça e me siga rastejante, e temerosa, porque eu a terei conhecido e intimamente explorado. Então, obedecendo-me, tudo me será dado, o céu, o mar e os espaços da terra - e todo o coração do homem (13) .
Concebe-se de fato que a linguagem, nas suas partes conservadas sãs, ainda parentes dos Nomes Naturais, proporcione análise de sua estrutura profunda e dos segredos da criação. Mais de uma raiz, nas nossas línguas vulgares, deve ter guardado alguma coisa de sua elevada origem: pois se houve confusão, decadência, não houve jamais ruptura brutal e total. Também, com Mallarmé, o poeta chamava à sua ajuda o professor de inglês, que tenta a delicada dissecação das consoantes saxãs, e a elucidação de seu sentido profundo. Menos árdua, menos duvidosa parece a procura, quando se trata de uma língua tradicional ou sagrada. Na Índia, o Nirukta, que os Ocidentais têm às vezes tomado como uma pueril, ilusória etimologia, é a “análise”, pela redução das palavras a seus elementos constitutivos e por sua comparação segundo esses elementos, de suas significações e de seus parentescos profundos, ricos de ensinamentos sobre a natureza e sobre as relações das noções ou dos objetos que eles designam. Nas línguas semíticas, os valores numéricos das letras multiplicam ainda as significações secretas e as correspondências das palavras. Um espelho perfeito da criação poderia pois ser apresentado por uma língua primitiva, melhor ainda pela língua original, floração do Verbo nos lábios dos primeiros homens. Também Mallarmé remeteu lucidamente a realização de suas ambições ao dia em que a Ciência, possuindo o vasto repertório dos idiomas jamais falados sobre a terra, escreverá a história das letras do alfabeto através de todas as idades e que ela seria quase sua absoluta significação, ora decifrada, ora desconhecida pelos homens, criaturas de palavras (14) E ele declarou, mais claramente ainda:
As línguas imperfeitas são muitas, falta a suprema... A diversidade, sobre a terra, dos idiomas, impede o indivíduo de proferir as palavras que, de outro modo, achariam, por um caracter único, materialmente a verdade. Esta proibição cruel expressa na natureza..., que não vale a razão para se considerar Deus (15).
Nós tocamos aqui no mito de Babel. A confusão das línguas foi, talvez, sanção, mas sobretudo precaução providencial, para evitar a uma humanidade decadente o mau uso e, antes de tudo, os efeitos perigosos das potências da Palavra: esta Palavra cuja comunicação, dizia Balzac, ueima e devora os que não estão preparados para recebê-la (16). Os Nomes Naturais, vibrações criadoras das coisas, conservam até em seus ecos humanos algum vestígio de sua potência divina. O Nome Natural de uma coisa, diz Arthur Avalon, o mais seguro e o mais autorizado entre os intérpretes ocidentais do Tantrismo, é o som produzido pela ação das forças motrizes que a constituem. Também, diz-se, aquele que pronuncia mentalmente e vocalmente, com uma força criadora, o Nome Natural de uma coisa, traz à existência a coisa que leva esse Nome (17). Criar, ou destruir, tanto faz, são o poder do homem em possessão dos Nomes Naturais. Hugo o reconheceu bem:
Coloque uma palavra sobre um homem e o homem estremecendo
Seca e morre, penetrado pela força profunda (18) .
Este poder, certas palavras, certas fórmulas, certos ritmos, da encantação litúrgica às fórmulas de feiticeiros de aldeia, permanecem carregando. O Mantra, entre outras aplicações, permite uma magia cuidadosamente reservada, salvo acidente, aos iniciados que não abusarão dela. Avalon traz dessa magia um exemplo impressionante: o fogo sagrado acendido sem nenhuma operação material, e elevando-se ao simples chamado do Mantra Ram. A magia ordinária não poderia fazer senão uma aplicação inferior, e talvez aberrante, desses poderes que, normalmente exercidos pela liturgia, concorrem à conservação da ordem divina, do Dharma.
As letras árabes guardam também com as coisas, como nós vimos, não somente uma relação simbólica, mas de correspondências eficazes, os iniciados muçulmanos, modificando ou invertendo as letras segundo a ciência chamada Simiâ, podem, diz-se, agir sobre os homens e sobre o mundo.
Na China antiga, os nomes, os caracteres, eram coisas mágicas. Nomear um ser era agir sobre ele, para sua saúde ou seu malefício. O mesmo termo chinês Ming, designa uma parte da via, o destino, mas também a palavra ou o caracter. E a tradição diz que a invenção dos caracteres pôs em fuga os demônios que gemem, porque eles dariam aos homens, doravante, poder sobre eles. Também, profundo era o cuidado das denominações corretas, e o papel que elas desempenhavam oficialmente no Império. O essencial, dizia Confúcio, é proferir corretamente as designações. O primeiro dever do soberano era fixar os nomes e os caracteres: por falta do que, toda medida fica sem efeito, toda política fulminada de esterilidade. É pelo intermédio dos nomes que se governavam os seres e as coisas; a justeza dos termos era garantia de justiça no Estado. Era dispensado à língua o valor e as responsabilidades de uma verdadeira liturgia. E o mais glorioso louvor que o grande imperador Che Houang Ti pode fazer gravar em sua honra sob as estelas foi este:
Eu trouxe a ordem à multidão dos seres: cada coisa tem o nome que lhe convém.
Entre os vestígios sagrados ou mágicos da linguagem verdadeira, a poesia muitas vezes reivindicou seu lugar. Desde a antigüidade até Valéry, os poemas receberam, ou lhes atribuíram, o nome de “encantos” (charmes). E a ocasião seria boa, na moderna confusão do espírito da qual falamos, para brincar a este respeito com as palavras e as misturas. O que entrevimos das doutrinas orientais, nos ajudará a determinar o lugar real e legítimo da poesia entre as formas superiores ou insólitas da linguagem, e a por em evidência algumas justificações claras do nome “encantos” ?
Elas justificam, antes de tudo, a intuição e os passos de um dos mais lúcidos entre os poetas da Europa, Mallarmé, que quis, por um retorno à sua acepção etimológica, à sua significação primitiva,
Dar um sentido mais puro às palavras da tribo (19).
Tudo o que nós dissemos da linguagem confirma que tal é, em princípio, a boa via. Do Nome Natural, e mesmo dos nomes primordiais, um poeta moderno seguramente não pode muito mais que sugerir a procura e a nostalgia: no fim inacessível dessa busca, a poesia aliás morreria no seu triunfo e se tornaria magia superior, ou liturgia; no caminho para uma língua paradisíaca, ela encontraria no Paraíso seu “fim”, nos dois sentidos da palavra. O lugar de toda arte se situa entre este mundo e o mundo intemporal das Idéias; como toda arte, a poesia não permanece ela mesma senão nesse equilíbrio providencial, nesse difícil e delicioso suspense.
Além de sua busca lúcida e sábia do primitivo, o poeta às vezes reencontra por sorte, intuição, revelação ou recordação, fragmentos de palavras ainda verdadeiras, de sílabas, ordenações, aliterações ainda justas, eficazes: não mais criadoras, certo, no plano material, mas potencialmente, magicamente evocadoras no plano do mental. As coisas são chamadas à existência em sua plenitude esquecida, em sua primordial perfeição. Pode-se entender nesse sentido a altiva afirmação de um Novalis:
A poesia é o real absoluto. Quanto mais poética, mais verdadeira.(20)
Este não é, porém, o essencial do poder poético. A poesia teria apenas que repetir somente a criação: seu movimento próprio e inverso, e a verdadeira poesia dirigida para a origem. Se ela encontra as vibrações criadoras, é para nos fazer remontar o caminho, em favor do recolhimento que ela instaura, da direção que ela sugere, até a sua fonte primeira que é o silêncio. Coisa humana, mas tendendo para a essência, ela tem pois seu lugar abaixo da liturgia, cuja substância verbal é o corpo mesmo de uma divindade, e o objeto a ordem do universo, mas acima da magia vulgar, que se exerce no mundo criado sem alvo espiritual.
Inteiramente espiritual, ao contrário, é o prazer que dá a poesia, e que a Índia chama Rasa, o “sabor”. Este “sabor” do poema, Vishvanâtha o diz estrangeiro a este mundo, irmão gêmeo da gustação do sagrada, jóia e conhecimento unidos; e esta essência da poesia, o espírito, diz ele, o gosto não como uma coisa separas, mas como sua própria essência. (21)
Esta comunhão, esta fusão do sujeito e do objeto na essência, são o alvo de toda poesia verdadeira. Mallarmé o concebeu perfeitamente e exprimiu:
Um homem pode advir... se ele clamou por si mesmo, cuidou de conservar seu desembaraço estritamente uma devoção às vinte e quatro letras como elas são, pelo milagre da infinidade, fixadas em alguma língua sua, pois um sentido para suas simetrias, até uma transfiguração no termo sobrenatural, que é o verso; ele possui essa civilidade edênica, bem acima de outra, o elemento felicidade, uma doutrina ao mesmo tempo que uma região.(22)
Todo nosso estudo está resumido nessas linhas magistrais: o descenso do infinito no Verbo, a floração humana desse Verbo nas letras, sua presença até em nossas línguas decadentes, sua busca por uma ascese e uma devoção estritas, as correspondências ativas postas em jogo pelas palavras, enfim a essência reencontrada na beatitude. A poesia propõe “uma doutrina ao mesmo tempo que um lugar”: de outro modo diz, e como todo Yoga, um método e uma realização. Sem dúvida é no mesmo sentido que é preciso interpretar sobretudo “o real absoluto” de que falava Novalis, que ele também plenamente consciente das possibilidades e da dignidade de sua arte afirmava:
Quem quer que fale verdadeiramente, está pleno da via eterna, e sua escritura nos aparece estranhamente próxima dos mistérios autênticos...(23)
A poesia de fato, verdadeira “alquimia do verbo”, efetua o retorno da aparência à Idéia, da coisa ao Princípio. Reencontrando, pelo remontar, o curso das vibrações justas, ela nos conduz de Dhvani a Sphota, que nós o vimos, nos introduz ao plano do não-manifestado, do Parabrahman. Tanto é que Rasa, o “sabor” poético, é conhecimento do Brahman, consciência da Unidade e do si e do absoluto. Um Mallarmé não é, pois, como se pretendeu, um buscador do nada: mas do ser, do qual nossa existência não é senão um acidente (evidentemente necessário), pois do não-ser superior ao ser mesmo, e que é o Parabrahman. Também o livro mallarmeniano se acabava num silêncio que não é aquele do poeta impotente, seja o que for que ele mesmo pode dizer, mas o silêncio primordial reencontrada onde não é desencadeado o trovão da sílaba criadora Om.
No curso dessa confrontação das doutrinas do Oriente coma as mais vivas intuições ocidentais, nós citamos tantas vezes este poeta, cuja busca foi a mesma dos gramáticos e dos poetas hindus, e faz dele um irmão ocidental de Bhartrihari, que é justo lhe deixar a palavra para concluir esta palestra. Sua língua quintessencial, sua sintaxe insólita e rarefeita, são aqui perfeitamente legítimas, e sem dúvida necessárias, pois que se trata de sugerir esta Realidade essencial. da qual o vazio e a ausência são os símbolos menos imperfeitos. Escutemos Mallarmé:
Para quê, a maravilha de transpor um fato da natureza em seu quase desaparecimento vibratório, porém segundo o jogo da natureza , é apenas para que emane, sem o constrangimento de uma próxima ou concreta recordação, a noção pura.
Eu digo: uma flor! e, além de esquecer onde minha voz relega algum contorno, enquanto alguma outra coisa que os cálices suspensos, musicalmente se levante a idéia mesma e suave, ausente de todos os buquês.(24)