Titus Burckhardt
(Tradução de Luiz Pontual)
Titus Burckhardt
(Tradução de Luiz Pontual)
É fato conhecido que o jogo de xadrez se originou na Índia. Foi passado para o Ocidente medieval pelo intermédio dos persas e árabes, a quem nós devemos, por exemplo, a expressão “xeque-mate” (Schachmatt em alemão) que é derivado do Persa shâh = rei e o árabe mât: “o rei está morto.” Na época do Renascimento foram mudadas algumas das regras do jogo: à “rainha”(1) e aos dois “bispos”(2) foi concedida maior mobilidade, e a partir daí o jogo adquiriu um caráter mais abstrato e matemático; o modelo básico foi mantido, assim como a estratégia, sem que tenham se perdido as características essenciais de seu simbolismo.
Na posição original das peças de xadrez, o modelo estratégico antigo permanece óbvio; a pessoa pode reconhecer dois exércitos dispostos de acordo com a ordem de batalha que era habitual no Oriente antigo: as tropas leves, representadas pelos peões, formam a primeira linha; o corpo do exército consiste nas tropas pesadas, as carruagens de guerra (“torre”), o cavalo (“a cavalaria”), e os elefantes de guerra (os bispos); o “o rei” com sua “dama” ou “o conselheiro” é posicionado no centro das tropas.
A forma do tabuleiro de xadrez corresponde o “clássico” tipo de Vastu-mandala (da doutrina tradicional Hindu), o diagrama que também constitui o plano básico de um templo ou uma cidade. Tem sido considerado (3) que este diagrama simboliza a existência concebida como um “campo de ação” dos poderes divinos. Assim, o combate que acontece no jogo de xadrez representa, em seu significado mais universal, o combate do devas com o asûras, isto é, dos “deuses” com os “titãs”, ou dos “anjos” (4) com os “demônios”; todos os outros significados do jogo derivam deste, que é o fundamental.
A descrição mais antiga que possuímos do jogo de xadrez aparece na obra “As Pradarias Douradas”, do historiador árabe Al-Mas'ûdî, que viveu em Bagdá no século IX. Al-Mas'ûdî atribui a invenção - ou codificação - do jogo a um rei hindu “Balhit”, um descendente de “Barahman” Há uma confusão óbvia aqui entre a casta dos Brahmins, e uma dinastia; mas que o jogo de xadrez tem que uma origem brahmin é provado pelo eminente caráter sacerdotal do diagrama de 8 x 8 quadrados (ashtâpada). Mais adiante, o simbolismo bélico do jogo relaciona isto ao Kshatriyas, a casta de príncipes e nobres, como Al-Mas'ûdî indica quando ele escreve que os hindús consideraram o jogo de xadrez (shatranj, do chaturanqa sânscrito (5)) como uma “escola de governo e defesa”.
É dito que o Rei Balhit escreveu um livro sobre o jogo no qual “ele fez um tipo de alegoria dos corpos celestes, como os planetas e os doze signos do Zodíaco, consagrando cada peça a uma estrela...”. - Podemos lembrar que os hindus reconhecem oito planetas: o sol, a lua, os cinco planetas visíveis ao olho nu, e Rahu, a “estrela escura” dos eclipses (6); cada um destes “planetas” rege uma das oito direções de espaço”. “Os indianos”, continua Al-Mas'ûdî, “dão um significado misterioso ao redobrar, quer dizer, para a progressão geométrica, efetuada nos quadrados do tabuleiro de xadrez; eles estabelecem uma relação entre a primeira causa que domina todas as esferas e na qual tudo acha seu fim, e a soma dos quadrados do tabuleiro de xadrez....”. Aqui o autor está confundindo o simbolismo cíclico insinuado no ashtapada e a lenda famosa de acordo com as qual o inventor do jogo pediu ao monarca que enchesse os quadrados do tabuleiro de xadrez de grãos de milho, colocando um grão no primeiro quadrado, dois no segundo, quatro no terceiro, e assim por diante, até o sexagésimo-quarto quadrado, o que dá a soma de 18.446.744.073.709.551.616 grãos.
O simbolismo cíclico do tabuleiro de xadrez reside no fato que expressa o desdobramento de espaço de acordo com o quaternário e octonário das direções principais (4 x 4 x 4 = 8 x 8), e que sintetiza, de forma cristalina, os dois grandes ciclos complementares de sol e lua: o duodenário -12- do zodíaco e as 28 mansões lunares; além disso, o número 64, que é a soma dos quadrados no xadrez-tábua, é um sub-múltiplo do número cíclico fundamental 25920, que mede a precessão dos equinócios. Nós vimos que cada fase de um ciclo, “fixado” no esquema de 8 x 8 quadrados, é governado por um corpo celeste e ao mesmo tempo simboliza um aspecto divino, personificado por um deva (7). É assim que este mandala simboliza ao mesmo tempo o cosmo visível, o mundo do Espírito, e a Divindade em seus aspectos múltiplos.
Al-Mas'ûdî está então certo ao dizer que os hindus explicam, “por cálculos baseados no tabuleiro de xadrez, a marcha do tempo e os ciclos, as influências mais altas que são exercidas neste mundo, e os laços que os prendem à alma humana...”. (8)
O simbolismo cíclico do tabuleiro de xadrez era conhecido pelo Rei Alphonsus o Sábio, o trovador famoso de Castilha que em 1283 escreveu o “Libros del Acedrex”, uma obra que baseada em grande parte em fontes Orientais. Alphonsus o Sábio também descreve uma variante muito antiga do jogo de xadrez, o “jogo das quatro estações” que é jogado entre quatro parceiros, de forma que as peças, dispostas nos quatro cantos do tabuleiro de xadrez, são movimentadas por cada um em sentido circular, análogo ao movimento do sol. As 4 x 8 peças têm as cores verde, vermelho, preto e branco; elas correspondem às quatro estações: primavera, verão, outono e inverno; aos quatro elementos: ar, fogo, terra, e água; e aos quatro “humores” orgânicos. (9)
O movimento dos quatro campos simboliza transformação cíclica. Este jogo que estranhamente se assemelha a certos rito e danças “solares” dos índios norte-americanos, representa analogamente o princípio fundamental do tabuleiro de xadrez.
O tabuleiro de xadrez pode ser considerado como a extensão de um diagrama formado por quatro quadrados, alternativamente preto e branco, e constitui em si mesmo um mandala de Shiva, Deus em seu aspecto transformador: o ritmo quaternário, que é o deste mandala , é a “coagulação do espaço”, e expressa o princípio do tempo.
Os quatro quadrados, colocados ao redor de um centro não-manifestado, simbolizam as fases cardeais de todos os ciclos. A alternância dos quadrados pretos e brancos neste diagrama elementar do tabuleiro de xadrez (10) salienta sua significação cíclica (11) e o faz o equivalente retangular do símbolo extremo-oriental do yin-yang. É uma imagem do mundo em seu dualismo fundamental (12).
Se o mundo sensível em seu desenvolvimento integral resulta até certo ponto da multiplicação das qualidades inerentes no espaço e tempo, o Vastu-mandala, por sua parte, deriva da divisão de tempo através de espaço: podemos recordar a gênese do Vastu-mandala no interminável ciclo celestial, que é dividido pelos pontos cardeais, cristalizado então em uma forma retangular (13). O mandala é assim a reflexo invertido da síntese principial do espaço e tempo, e é nisto que sua significação ontológica reside.
De outro ponto de vista, o mundo é “tecido” das três qualidades fundamentais ou gunas (14) e o mandala representa esta tessitura de uma maneira esquemática, em conformidade com as direções cardeais de espaço. A analogia entre o Vistu-mandala e a tessitura se dá pela alternação de cores que recordam um tecido cuja trama e urdidura são alternadamente aparentes e escondidos.
Além disso, a alternação de preto e branco corresponde aos dois aspectos da mandala que é em princípio complementar mas, na prática, opostos: a mandala é, por um lado, Purusha-mandala, quer dizer, um símbolo do Espírito Universal Purusha já que é imutável e síntese transcendente do cosmo; por outro lado é um símbolo de existência (Vastu) considerado como o suporte passivo das manifestações divinas.
A qualidade geométrica do símbolo expressa o Espírito, enquanto sua extensão puramente quantitativa expressa existência. Do mesmo modo, sua imutabilidade ideal é “espírito” e sua limitação coagulada é “existência” ou materia; aqui não se trata de matéria prima, virgem e generosa, mas “materia secunda”, “escura” e caótica, que é a raiz do dualismo existencial. Em conexão com isto, podemos recordar o mito segundo o qual Vastu-mandala representa um asûra, personificação de existência bruta: os devas conquistaram este demônio e estabeleceram a sua “morada” no corpo estendido de sua vítima; assim, eles lhe conferem uma “forma”, mas é ele que os manifesta (15).
Este significado duplo que caracteriza o Vastu-Purusha-mandala, o qual, aliás, será encontrado em todo símbolo, é de certo modo atualizado pelo combate que o jogo de xadrez representa. Este combate, como dissemos, é essencialmente entre devas e o asûra, que disputam o tabuleiro de xadrez do mundo. É aqui que o simbolismo do preto e do branco, já presente nas casas do tabuleiro de xadrez, assume seu valor completo: o exército branco é Luz e o exército preto, escuridão.
Em um domínio relativo, representa a batalha que acontece no tabuleiro de xadrez representa qualquer um dos dois exércitos terrestres, cada qual lutando em nome de um princípio (16), ou a batalha, no homem, do espírito e da escuridão; estas são as duas formas do “guerra santa”; a “pequena guerra santa” e a “grande guerra santa”, de acordo com um dito do Profeta Muhammad. Veremos a relação do simbolismo iimplicado no jogo de xadrez com o tema do Bhagavadita, um livro que é destinado aos Kshatriyas.
Se transpusermos a significação das diferentes peças de xadrez ao domínio espiritual, o rei se torna o coração, ou espírito, e as outras peças as várias faculdades da alma. Além disso, os movimentos das peças correspondem a modos diferentes de perceber as possibilidades cósmicas representadas pelo tabuleiro de xadrez: há o movimento axial do “castelos” ou carruagens de guerra, o movimento diagonal dos bispos ou elefantes, que seguem uma única cor ( das casas) , e o movimento complexo dos cavalos. O movimento axial, com “cortes” pelas diferentes “cores”, é lógico e viril, enquanto o movimento diagonal corresponde a uma continuidade “existencial” - portanto, feminino. O salto dos cavalos corresponde à intuição.
O que mais fascina o homem de casta nobre e bélica é a relação entre a vontade e o destino. Ora, é precisamente isto que é claramente ilustrado pelo jogo de xadrez, já que seus movimentos permanecem sempre inteligíveis.
Alphonsus o Sábio, em seu livro sobre xadrez, relata como um rei da Índia desejou saber se o mundo obedece à inteligência ou à sorte. Dois homens sábios, seus conselheiros, deram respostas opostas, e para provarem suas respectivas teses, um deles levou como exemplo o jogo de xadrez no qual a inteligência prevalece sobre a sorte, enquanto o outro trouxe um jogo de dados, o símbolo de fatalidade (17). Al-Mas'ûdî escreve igualmente que o rei “Balhit”,considerado como o codificador o jogo de xadrez, deu preferência ao xadrez em relação ao nerd, um jogo de azar, porque no primeiro forma-se a inteligência e, no segundo, a ignorância.
Em cada fase do jogo, o jogador é livre para escolher entre várias possibilidades, mas cada movimento implicará uma série de conseqüências inevitáveis, de forma que a livre escolha a cada jogada estará crescentemente limitada; o fim do jogo é visto, não como o fruto do acaso, mas como o resultado de leis rigorosas.
É aqui que vemos não só a relação entre vontade e destino, mas também entre liberdade e conhecimento; exceto no caso de inadvertência por parte de um dos oponentes, o jogador só salvaguardará sua liberdade de ação quando as decisões dele corresponderem com a natureza do jogo, quer dizer, com as possibilidades que o jogo implica. Em outras palavras, liberdade de ação está aqui em solidariedade completa com previsão e conhecimento das possibilidades; ao contrário, o impulso cego, porém livre e espontâneo como pode aparecer à primeira vista, revela-se no resultado final como uma “não-liberdade”.
A “arte real” é governar o mundo – externo e interno - em conformidade com suas próprias leis. Esta arte pressupõe sabedoria que é o conhecimento de possibilidades; agora todas as possibilidades são contidas, - de uma maneira sintética, no Espírito universal e divino. A verdadeira sabedoria é uma identificação mais ou menos perfeita com o Espírito (Purusha), este último sendo simbolizado pela qualidade geométrica (18) do tabuleiro de xadrez, “selo” da unidade essencial das possibilidades cósmicas.
O Espírito é Verdade; pela Verdade, homem é livre; fora de verdade, ele é o escravo de destino. Isso é o ensinamento do jogo do xadrez; o Kshatriya que se dedica a este jogo não só encontra um passatempo ou meios de subliminar sua paixão bélica e necessidade por aventura, mas também, de acordo com sua capacidade intelectual, um apoio especulativo e um “caminho” que conduz da ação à contemplação.
Notas:
(1) No xadrez Oriental esta peça não é uma “rainha” mas um “o conselheiro” ou “ministro” para o rei (em árabe mudaffir ou wazîr, em Persa fersan ou fars). A designação “rainha” no jogo Ocidental se deve indubitavelmente à uma confusão do termo Persa fersan que se tornou alferqa em castelhano e em francês antigo fierce ou fierqe , isto é, “a virgem.” Seja que como for, a atribuição de tal um papel dominante para o rei em relação à “a dama” corresponde bem à atitude de cavalheirismo. Também é significativo que o jogo de xadrez tenha sido passado ao Ocidente através da corrente Arabo-persa que também trouxe a arte heráldica e as regras principais de cavalheirismo.
(2) Esta peça era originalmente um elefante (árabe al-fil) que conduzia uma torre fortalecida. A representação esquemática da cabeça de um elefante em alguns manuscritos medievais também poderia ser vista como um “o boné do bobo” ou a mitra de um bispo: em francês a peça é chamada fou, “o bobo”; em alemão é chamado Laufer “o corredor”.
(3) Veja, do autor, “A Arte Sagrada no Oriente e no Ocidente” (Perennial Books, Londres, 1967), Capítulo l, “A Gênese do Templo Hindu”.
(4) Os devas da mitologia hindu são análogos aos anjos das tradições monoteístas; é sabido que cada anjo corresponde a uma função divina.
(5) A palavra chaturanqa significa o exército hindu tradicional, composto de quatro anqas = elefantes, cavalos, carruagens e soldados.
(6) A cosmologia hindu sempre leva em conta o princípio de inversão e exceção, que resultam do caráter “ambíguo” da manifestação: a natureza das estrelas é a luminosidade, mas como as estrelas por si não iluminam, também deve haver um lado escuro.
(7) Certos textos budistas descrevem o universo como uma tabuleiro de 8 x 8 quadrados, fixado através de cordas douradas; estes quadrados correspondem aos 64 kalpas do Budismo (veja “Saddharma Pundarika”, Burnouf, “Lotus de la bonne Loi”, pág., 148). No Ramayana, a cidade inconquistável dos deuses, Ayodhyâ, é descrita como um quadrado com oito compartimentos em cada lado. Lembramos também na tradição chinesa, os 64 signos que derivam dos 8 trigramas comentados no “I-Kinq”. Estes 64 sinais geralmente são organizados em correspondência às oito regiões de espaço. Assim, encontramos novamente a idéia de uma divisão quaternária e octonária do espaço, que sintetiza todos os aspectos do universo.
(8) Em 1254 São Louis proibiu xadrez entre seus assuntos. O santo teve em mente as paixões que o jogo poderia desencadear, especialmente como freqüentemente ocorre com o jogo de dados.
(9) Esta variante de xadrez é descrita no Bhawisya Purana. Alphonsus o Sábio também fala de um “grande jogo de xadrez” que é jogado em um tabuleiro de 12 x 12 quadrados (casas) e no qual as peças representam animais mitológicos; ele o atribui aos sábios da Índia.
(10) Dado que o tabuleiro de xadrez chinês, que igualmente teve sua origem na Índia, não possua a alternação de duas cores, presume-se que este elemento tenha vindo da Pérsia; permanece fiel, no entanto, ao simbolismo original do tabuleiro de xadrez.
(11) Isto também constitui um símbolo de analogia inversa; primavera e outono, manhã e noite, são inversamente análogos. De uma maneira geral, a alternação do preto e branco corresponde ao ritmo do dia e noite, de vida e morte, de manifestação e de reabsorção no não-manifestado.
(12) Por esta razão o tipo de Vâstu-mandala que tem um número desigual de quadrados não pode servir como um tabuleiro de xadrez: o “campo de batalha” que ele representa não pode ter um centro manifestado, pois simbolicamente teria que estar para além das oposições.
(13) Veja, do autor, “A Arte Sagrada no Oriente e no Ocidente”, Capítulo 2, “Os fundamentos da Arte Cristã” (Perennial Books, Londres, 1978).
(14) Veja René Guénon, O Simbolismo da Cruz (Luzac, Londres, 1958).
(15) O mandala de 8 X 8 quadrados também é chamado Mandukat, “a rã”, por alusão à “Grande Rã” (maha-manduka) que suiporta o universo inteiro, e que é o símbolo dae matéria indiferenciada e obscura.
(16) Em uma guerra santa é possível que cada um dos combatentes possa se considerar legitimamente como o protagonista da Luz que luta contra a escuridão. Esta é novamente uma conseqüência do significado duplo de todo símbolo: o que para um é a expressão do Espírito, pode ser a imagem da escuridão nos olhos do outro.
(17) O mandala do tabuleiro de xadrez, por um lado, e dados, no outro, representam dois símbolos diferentes e complementares do cosmo.
(18) Recordemos que o Espírito ou a Palavra é a “forma das formas”, quer dizer, o princípio formal do universo.